Eu aprendi mais ou menos bem a língua portuguesa. Tive excelentes
professores durante o ensino de base. Um deles, logo na quinta série, bem
jovem, chamava-se Clístenes. Este nome eu não sabia dizer. Mas eu havia lido,
na biblioteca de escola que Clístenes foi um alguém importante na Grécia
Antiga. Achava o nome lindo e sedutor. Ele era um professor sério, dedicado,
mas se me lembro bem, sua disciplina mesmo deveria ser inglês e ele estava ali “quebrando
um galho”. Interessava-lhe passar um conteúdo enxuto e ensinar gramática com
perfeição.
Um dia, Clístenes escreveu no quadro verde, com o giz branco, aquela
letra redonda simetricamente perfeita, uma lição de substantivos masculinos e
seus correspondentes femininos usando nomes de animais: Leão/leoa; boi/vaca;
gato/gata; galo/galinha; pavão/pavão fêmea; tigre/tigre fêmea...
“Tigre fêmea?” Indaguei-me.
Então eu, como sempre, curiosa, tive uma terrível ideia. Perguntar se
aquilo estava certo. Mesmo sentindo medo de questionar e receber aquele sorriso
sarcástico no canto da boca, me dilacerando o protagonismo enquanto aluna, pelo
professor pensar, talvez, que eu o estava testando. Ainda assim eu perguntei.
Eu não me sentia como a maioria dos alunos da zona rural, pouco interessados
em aprender para que serve gênero, adjetivo e plural. Eu sim queria muito saber.
Eu nem sabia quando usaria, mas era importante guardar. Vai um dia eu
precisasse. Então, mesmo com minha timidez e medo de levar o velho “pra trás”,
eu quis muito saber e lhe chamei a atenção com minha pergunta insolente:
- Professor, o feminino de tigre não é tigresa não?
Ele me fitou, sorriu de forma contida, colocou a mão no queixo, pensou
por um segundo e questionou com um semblante interrogativo:
- Tigresa? Onde foi que você viu isso?
A turma inteira caiu na gargalhada. O teor da piada para o colegas era a
de que parecia eu, nos meus irrelevantes onze anos, querer saber mais que o
professor. E pior, querer saber mais que Clístenes, que obviamente, para a
turminha, parecia ser o homem que mais sabia gramática no mundo todo.
Com os risos, recolhi-me a minha concha. Foram dias de chacota. Eu não
gostava de zombarias. Eu era pequena, mas podia me zangar e tomar medidas. Foi
assim como os garotos mais velhos, repetentes do sétimo ano que me chamavam de
Sandalhinha. Diziam que eu era pequena demais como um chaveirinho e por isso o
apelido. Na escola eu ainda podia suportar, mas quando aquilo queria
ultrapassar os portões eu não permiti. Menina desconfiada, eu não gostava de
apelidos e intimidades, menos ainda com gente distante de meu convívio. Fui
reclamar na direção.
A diretora, Dona Isolda, pessoa muito boa, competente e justa foi até
eles dizer que se não parassem iriam levar uma suspensão. Minhas colegas disseram que fui longe demais,
pois os meninos eram, segundo elas, “simpáticos e me falavam aquilo porque me achavam
bonitinha”.
- Então podem ficar com apelido carinhoso para vocês.
- Credo, Tays.
Naquela época, pouco me importava
o que eles achavam e muito me importava o que me faziam sentir.
Um deles me implorou para não falar mais sobre assunto com a diretora,
porque era só uma brincadeira inocente.
- Menino, se é tão inocente, por que não posso compartilhar com a
direção sua brincadeira? Não quer mais compartilhar a inocência que me constrange
na hora no recreio? Não me parece muito inocente.
- O quê?!
Essa coragem e atrevimento sumiam completamente nas aulas de português
de Clístenes.
Ah, que vergonha eu senti. Foram dias de constrangimento e os
coleguinhas ainda rindo da minha pergunta. Algumas semanas depois, na mesma aula
de português, o professor sentado ao birô, cabeça baixa, pensativo, aguardando
copiarmos a tarefa do quadro verde, de repente se ergueu e me chamou:
- Tays!
Mas que Susto. Tremi e respondi imediatamente.
- Senhor?!
- Você tinha razão. O feminino de tigre é tigresa. Quando você falou,
fiquei incrédulo, porque não lembrava de ter ouvido esta palavra. Mas eu fui
pesquisar. Foi algo novo para mim.
- Certo, professor. Obrigada. Disse inflamada de glória por dentro,
tendo que conter a alegria enquanto ouvia soarem os sinos da redenção. O hino
em minha cabeça era um exagero necessário! Aaaa-leluia! Aaaa-luluia! Aleluia,
ah, ah!!
A turma, em silêncio profundo, ouviu o professor “você tinha razão”.
Parecia apenas Clístenes e eu na sala. O primeiro professor da minha vida que
admitiu que não era infalível. E que grande lição! Eu agora sabia que eu também
não precisava ser.
Meus professores de Língua Portuguesa...
Eles eram muito bons. Esse povo que faz letras parece não cessar a busca pela
perfeição. Há algo de misterioso neles. Não raramente me envolvo com esse povo
e me lasco. Eu não sou professora de língua portuguesa. Passei para letras e
história no mesmo ano. Ainda que não tenha escolhido letras nem me arrependido
de ter escolhido história, pessoas de letras, para bem ou para mal, vivem me
aperreando. Vejam se recordam o que
passei com Gabriele no episódio do ônibus universitário.
Depois que aprendi a ler, eu inventei de querer entender e fazer bem
essa coisa de escrever. Não me tornei, por causa disso, uma exímia escritora,
porque escrever é difícil demais para mim. Mesmo assim, eu tive as melhores aulas do
ensino público para saber identificar Orações Subordinadas, figuras de linguagem
e produzir redação. Eu tenho sorte por ser de Areia. Muita gente não comenta sobre isso,
mas nesta cidade os
docentes costumam levar a sério essa coisa de ensinar.
Em 1998 Ana Cristina quem me ensinou quase tudo que sei em morfologia e sintaxe.
Ela usava um esquema perfeito que me deixava perplexa no oitavo ano. Eu
entendia o que ela dizia mesmo que à época não fizesse o menor sentido ter
que aprender tudo aquilo. Aquela caligrafia lindíssima no quadro, puxando setas
e formando chaves para identificar verbos transitivos, os objetos diretos e
indiretos. Ah, Ana Cristina... Quanta excelência no uso das vírgulas.
Ela quem me fez analisar pela primeira vez uma música de Luiz Gonzaga,
Asa Branca. Rapaz... Foi bom, visse? Irritava os alunos porque nunca faltava. Chegava
na hora, saia depois do último minuto. Zelosa, articulada, entrava no passo
apressado, mas com voz doce e calma de veludo, acariciando o intelecto com sua
paixão por compartilhar conhecimento, desejava boa tarde e sorria leve. Seríssima e
sereníssima com o que se propunha a fazer. Exemplar. Mas eu era besta demais.
Não aproveitei tanto quanto poderia. Nunca deu para agarrar toda densidade
daquelas aulas. Meus colegas reclamavam e
diziam que português era difícil. Pensava comigo “Esta é a melhor e a pior
parte.”
Mas Ana não era só Ditado. Ela era uma coleção de obras literárias com
prosa e poesia entrelaçadas num só verso.
Ela provocava, olhando perifericamente, ouvindo com atenção aos
cochichos de fundo de sala, balançando ansiosamente a perna cruzada por baixo
do birô. Anna pedia silêncio e reclamava com voz clara, chamando pelo nome o
infrator. Mas perdia a pose porque ria das presepadas. E por baixo dos cachos do
seus cabelos fino, tentando esconder o riso, os alunos notavam. Por sua
maleabilidade a amavam.
Anna não só nos fazia ler, ela nos lia. Nos lia todos os dias. A mim,
ela preenchia as lacunas e eu odiava decepcioná-la com a palavra “exceção” tão excessivamente errada em todos os meus ditados. Decepcioná-la era o que eu
pensava fazer. Porém hoje, penso que ela sabia que depois de tanto errar, quanto
mais me importasse acertar, um dia eu acertaria para não mais errar de novo. E
dessa maneira ela insistia não apenas comigo, mas com todos da turma.
Anna colocava a gente para ler tudo que pudesse, precisasse e tempo
desse. Machado, Graciliano, Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, Jorge
Amado, Raquel de Queiroz, Cecília Meireles, Carlos Drummond, Aluísio de
Azevedo, Gregório de Matos, Mário Quintana, Clarice... A Carta de Caminha, os
poemas de Camões... Gonçalves Dias, Veríssimos, Pessoa... e cada qual no seu
quadrado literário.
Ela tinha um negócio de trazer umas frases do dia. Algumas delas entranharam
e ajudaram a formar o meu caráter. Anna me jogava indiretas para eu me tocar
das besteiras adolescentes alimentadas pelo meu coração. As suas figuras de
linguagem me enlouqueciam e até hoje quando preciso de um uso mais afinado,
preciso pesquisar. Eu as entendo, mas como naquela época, só as preciso
contextualizar.
Em 2001, de nada tinham me valido os meus “dez” em redação, inglês,
história... Matemática me fez repetente do segundo ano médio. Em 2002, revoltada
por repetir e com um mal humor adolescente insuportável, eu conheci Alcione. Foi
pouco tempo com este professor. Depois ele acabou se tornando diretor e eu
odiei isto. Alcione parecia ter uma sensibilidade incrível, uma vontade de
transmitir não apenas o conhecimento, mas os sentimentos, as percepções que os autores
lhes transmitiam em cada poema, em cada texto ou livro que lia. Eu sabia que
com ele poderia aprender muito sobre semântica e estilística. Quem sabe
entender mais de poesia com quem vivi grande parte da vida intrigada. Eu não a
compreendia e quando a compreendia, ela parecia amuada comigo. Eu quis Alcione
mais tempo na sala, mas ele pegou seus poemas, suas músicas, sua disposição e levou
tudo para diretoria. Tudo dele ficou mudo para mim. Por falar nisso, uma vez,
em sala, me rebelei e xinguei um colega de turma. Fui parar na direção e lá
estava Alcione, estupefato ao saber.
- Você?!
- Desculpe-me.
- O que houve?
- Houve que eu fiz algo ruim e nem sequer posso dizer que me arrependo.
- Por que o xingou?
- Achei que ele merecia.
- Por que achou isto?
- Por que não sou ele. Tenho certeza que ele acha que não merece e
porque vocês acham também que ele não merece é que estou aqui.
- Não está aqui porque ele não mereça. Está aqui porque há outros modos
de resolver conflitos.
- Foi pensando assim que a França e a Inglaterra deixaram Hitler invadir
os Sudetos.
Ele me olhou por cima dos óculos.
- Tays, você sempre foi educada, estudiosa, com um histórico ilibado...
Eu vou colocar aqui só advertência. Mas que não aconteça de novo, senão serei
obrigado tomar medidas mais firmes. Está dispensada.
- Obrigada, diretor.
Ah, professor Alcione... Eu já quis perdoá-lo várias vezes por não dar
mais aula de literatura e ainda não consegui. Por outro lado, cutuca-me a
compreensão de que todos nós temos nossas próprias motivações. Alcione deve ter
encontrado seu caminho e não cabe a mim, justo a mim, coloca-lo na cruz, só
porque não se sacrificou em sala de aula para me ajudar a sentir, compreender e
amar poesia. Isto ocorreria no tempo certo, anos depois.
Estes professores... Será que sabem que eles tatuam coisas na alma dos
seus alunos? Eu sei. Tento cuidar dos meus com zelo. E sou muito falha às
vezes, mas não é por querer mal. É porque não sou perfeita.
Talvez os leitores e leitoras queiram entender o porquê de trazer estas
memórias justo agora. E já lhe vou esclarecer. É que eu ando errando demais na
escrita das palavras. Isto me incomoda. Aprendi a escrever, mas não sei escrever
como gostaria, o que naturalmente já me irritava o bastante. Só que agora está
pior. Aliás, queiram me perdoar, se ao ler até aqui, perceberam meus equívocos
gramaticais. Eu até reviso muito, mas sempre algo passa despercebido. Outro dia
troquei TRÁS por TRAZ. E outro dia troquei MACIA por MASSIA. E outro dia
troquei TOSSE por TOCE. E outro dia troquei INTUBADO por ENTUBADO. E outro dia
troquei ESCLARECER por EXCLARECER. Alguns dias atrás esqueci como se escreve a
palavra obcecado e depois como se escreve a palavra vulnerável. Também esqueci
como se escreve escassez e outro dia escrevi com S no final a palavra talvez.
Eu ando me espiritando com estas coisas que podem parecer tolas. Eu
aprendi com Clístenes que eu posso errar, que não sou infalível, mas ando com
pressa demais e minha ansiedade está me desensinado as palavras, fazendo-me tropeçar
em erros primários. Incomoda-me e tenho as mesmas sensações de quando errava a
palavra exceção dos ditados de Anna Cecília.
As vírgulas arrumadas de Ana Cristina, tão bem postas nas lições, hoje,
eu as coloco em lugares que não deveriam estar e as deixo faltar onde são necessárias.
Depois, quando vou revisar o texto, sinto uma agonia, uma espécie de toque com
aquela desarrumação. Poderia encontrar um culpado e talvez escolhesse Alcione
para culpar, pois foi ele quem deixou de me aperfeiçoar ao migrar para
diretoria. Mas no fim, eu sei que a culpa é minha. Culpa de minha pressa, de
minha ansiedade, de minha tagarelice, de minha falta de atenção. E principalmente,
culpa por não praticar continuadamente a primeira lição do professor Clístenes,
de que está tudo bem, de vez em quando errar. O problema é que, paranoica que
sou, sempre penso que estou abusando desse direito. Mesmo quando, ao enxergar
os meus erros, proponha-me a fazer as devidas correções.