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segunda-feira, 12 de julho de 2021

Quem me gramaticou.

 

Eu aprendi mais ou menos bem a língua portuguesa. Tive excelentes professores durante o ensino de base. Um deles, logo na quinta série, bem jovem, chamava-se Clístenes. Este nome eu não sabia dizer. Mas eu havia lido, na biblioteca de escola que Clístenes foi um alguém importante na Grécia Antiga. Achava o nome lindo e sedutor. Ele era um professor sério, dedicado, mas se me lembro bem, sua disciplina mesmo deveria ser inglês e ele estava ali “quebrando um galho”. Interessava-lhe passar um conteúdo enxuto e ensinar gramática com perfeição.

Um dia, Clístenes escreveu no quadro verde, com o giz branco, aquela letra redonda simetricamente perfeita, uma lição de substantivos masculinos e seus correspondentes femininos usando nomes de animais: Leão/leoa; boi/vaca; gato/gata; galo/galinha; pavão/pavão fêmea; tigre/tigre fêmea...

“Tigre fêmea?” Indaguei-me.

Então eu, como sempre, curiosa, tive uma terrível ideia. Perguntar se aquilo estava certo. Mesmo sentindo medo de questionar e receber aquele sorriso sarcástico no canto da boca, me dilacerando o protagonismo enquanto aluna, pelo professor pensar, talvez, que eu o estava testando. Ainda assim eu perguntei.

Eu não me sentia como a maioria dos alunos da zona rural, pouco interessados em aprender para que serve gênero, adjetivo e plural. Eu sim queria muito saber. Eu nem sabia quando usaria, mas era importante guardar. Vai um dia eu precisasse. Então, mesmo com minha timidez e medo de levar o velho “pra trás”, eu quis muito saber e lhe chamei a atenção com minha pergunta insolente:

- Professor, o feminino de tigre não é tigresa não?

Ele me fitou, sorriu de forma contida, colocou a mão no queixo, pensou por um segundo e questionou com um semblante  interrogativo:

- Tigresa? Onde foi que você viu isso?

A turma inteira caiu na gargalhada. O teor da piada para o colegas era a de que parecia eu, nos meus irrelevantes onze anos, querer saber mais que o professor. E pior, querer saber mais que Clístenes, que obviamente, para a turminha, parecia ser o homem que mais sabia gramática no mundo todo.

 Eu, de vestidinho verde claro tipo jardineira sem estampas, meias brancas até o joelho, cabelo liso muito preto, solto e longo até a cintura, com uma franja volumosa em cima das sobrancelhas, pequena demais para acharem que eu pertencia ao quinto ano, era arisca e arredia a muitos contatos.

Com os risos, recolhi-me a minha concha. Foram dias de chacota. Eu não gostava de zombarias. Eu era pequena, mas podia me zangar e tomar medidas. Foi assim como os garotos mais velhos, repetentes do sétimo ano que me chamavam de Sandalhinha. Diziam que eu era pequena demais como um chaveirinho e por isso o apelido. Na escola eu ainda podia suportar, mas quando aquilo queria ultrapassar os portões eu não permiti. Menina desconfiada, eu não gostava de apelidos e intimidades, menos ainda com gente distante de meu convívio. Fui reclamar na direção.

A diretora, Dona Isolda, pessoa muito boa, competente e justa foi até eles dizer que se não parassem iriam levar uma suspensão.  Minhas colegas disseram que fui longe demais, pois os meninos eram, segundo elas, “simpáticos e me falavam aquilo porque me achavam bonitinha”.

- Então podem ficar com apelido carinhoso para vocês.

- Credo, Tays.

 Naquela época, pouco me importava o que eles achavam e muito me importava o que me faziam sentir.

Um deles me implorou para não falar mais sobre assunto com a diretora, porque era só uma brincadeira inocente.

- Menino, se é tão inocente, por que não posso compartilhar com a direção sua brincadeira? Não quer mais compartilhar a inocência que me constrange na hora no recreio? Não me parece muito inocente.

- O quê?!

Essa coragem e atrevimento sumiam completamente nas aulas de português de Clístenes.

Ah, que vergonha eu senti. Foram dias de constrangimento e os coleguinhas ainda rindo da minha pergunta. Algumas semanas depois, na mesma aula de português, o professor sentado ao birô, cabeça baixa, pensativo, aguardando copiarmos a tarefa do quadro verde, de repente se ergueu e me chamou:

- Tays!

Mas que Susto. Tremi e respondi imediatamente.

- Senhor?!

- Você tinha razão. O feminino de tigre é tigresa. Quando você falou, fiquei incrédulo, porque não lembrava de ter ouvido esta palavra. Mas eu fui pesquisar.  Foi algo novo para mim.

- Certo, professor. Obrigada. Disse inflamada de glória por dentro, tendo que conter a alegria enquanto ouvia soarem os sinos da redenção. O hino em minha cabeça era um exagero necessário! Aaaa-leluia! Aaaa-luluia! Aleluia, ah, ah!!

A turma, em silêncio profundo, ouviu o professor “você tinha razão”. Parecia apenas Clístenes e eu na sala. O primeiro professor da minha vida que admitiu que não era infalível. E que grande lição! Eu agora sabia que eu também não precisava ser.

 

 Meus professores de Língua Portuguesa... Eles eram muito bons. Esse povo que faz letras parece não cessar a busca pela perfeição. Há algo de misterioso neles. Não raramente me envolvo com esse povo e me lasco. Eu não sou professora de língua portuguesa. Passei para letras e história no mesmo ano. Ainda que não tenha escolhido letras nem me arrependido de ter escolhido história, pessoas de letras, para bem ou para mal, vivem me aperreando.  Vejam se recordam o que passei com Gabriele no episódio do ônibus universitário.

Depois que aprendi a ler, eu inventei de querer entender e fazer bem essa coisa de escrever. Não me tornei, por causa disso, uma exímia escritora, porque escrever é difícil demais para mim.  Mesmo assim, eu tive as melhores aulas do ensino público para saber identificar Orações Subordinadas, figuras de linguagem e produzir redação. Eu tenho sorte por ser de Areia. Muita gente não comenta sobre isso, mas nesta cidade os docentes  costumam levar a sério essa coisa de ensinar.

 

Em 1998 Ana Cristina quem me ensinou quase tudo que sei em morfologia e sintaxe. Ela usava um esquema perfeito que me deixava perplexa no oitavo ano. Eu entendia o que ela dizia mesmo que à época não fizesse o menor sentido ter que aprender tudo aquilo. Aquela caligrafia lindíssima no quadro, puxando setas e formando chaves para identificar verbos transitivos, os objetos diretos e indiretos. Ah, Ana Cristina... Quanta excelência no uso das vírgulas.

Ela quem me fez analisar pela primeira vez uma música de Luiz Gonzaga, Asa Branca. Rapaz... Foi bom, visse? Irritava os alunos porque nunca faltava. Chegava na hora, saia depois do último minuto. Zelosa, articulada, entrava no passo apressado, mas com voz doce e calma de veludo, acariciando o intelecto com sua paixão por compartilhar conhecimento, desejava boa tarde e sorria leve. Seríssima e sereníssima com o que se propunha a fazer. Exemplar. Mas eu era besta demais. Não aproveitei tanto quanto poderia. Nunca deu para agarrar toda densidade daquelas aulas.  Meus colegas reclamavam e diziam que português era difícil. Pensava comigo “Esta é a melhor e a pior parte.”

 Em 2000, conheci na sala do primeiro ano médio, na época primeiro científico, a marcante Anna Cecília. Ensinava tudo. Gramática, redação, literatura. De cara, eu senti medo dela. Essa gente de letras tem coração de chantilly, mas postura de matador. Quem estudou com Anna Cecília vai dizer que ela costumava fazer ditados. E isso também é verdade. Eu não esqueço o número de vezes que tive que reescrever a palavra EXCEÇÃO. Eu sempre errava. Parecia maldição: escessão, excessão, esseção, exceção, excesão, escesão... Meu Deus!

Mas Ana não era só Ditado. Ela era uma coleção de obras literárias com prosa e poesia entrelaçadas num só verso.

Ela provocava, olhando perifericamente, ouvindo com atenção aos cochichos de fundo de sala, balançando ansiosamente a perna cruzada por baixo do birô. Anna pedia silêncio e reclamava com voz clara, chamando pelo nome o infrator. Mas perdia a pose porque ria das presepadas. E por baixo dos cachos do seus cabelos fino, tentando esconder o riso, os alunos notavam. Por sua maleabilidade a amavam.

Anna não só nos fazia ler, ela nos lia. Nos lia todos os dias. A mim, ela preenchia as lacunas e eu odiava decepcioná-la com a palavra “exceção” tão excessivamente errada em todos os meus ditados. Decepcioná-la era o que eu pensava fazer. Porém hoje, penso que ela sabia que depois de tanto errar, quanto mais me importasse acertar, um dia eu acertaria para não mais errar de novo. E dessa maneira ela insistia não apenas comigo, mas com todos da turma.

Anna colocava a gente para ler tudo que pudesse, precisasse e tempo desse. Machado, Graciliano, Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Cecília Meireles, Carlos Drummond, Aluísio de Azevedo, Gregório de Matos, Mário Quintana, Clarice... A Carta de Caminha, os poemas de Camões... Gonçalves Dias, Veríssimos, Pessoa... e cada qual no seu quadrado literário.

Ela tinha um negócio de trazer umas frases do dia. Algumas delas entranharam e ajudaram a formar o meu caráter. Anna me jogava indiretas para eu me tocar das besteiras adolescentes alimentadas pelo meu coração. As suas figuras de linguagem me enlouqueciam e até hoje quando preciso de um uso mais afinado, preciso pesquisar. Eu as entendo, mas como naquela época, só as preciso contextualizar.

 Veio então Alcione.

Em 2001, de nada tinham me valido os meus “dez” em redação, inglês, história... Matemática me fez repetente do segundo ano médio. Em 2002, revoltada por repetir e com um mal humor adolescente insuportável, eu conheci Alcione. Foi pouco tempo com este professor. Depois ele acabou se tornando diretor e eu odiei isto. Alcione parecia ter uma sensibilidade incrível, uma vontade de transmitir não apenas o conhecimento, mas os sentimentos, as percepções que os autores lhes transmitiam em cada poema, em cada texto ou livro que lia. Eu sabia que com ele poderia aprender muito sobre semântica e estilística. Quem sabe entender mais de poesia com quem vivi grande parte da vida intrigada. Eu não a compreendia e quando a compreendia, ela parecia amuada comigo. Eu quis Alcione mais tempo na sala, mas ele pegou seus poemas, suas músicas, sua disposição e levou tudo para diretoria. Tudo dele ficou mudo para mim. Por falar nisso, uma vez, em sala, me rebelei e xinguei um colega de turma. Fui parar na direção e lá estava Alcione, estupefato ao saber.

- Você?!

- Desculpe-me.

- O que houve?

- Houve que eu fiz algo ruim e nem sequer posso dizer que me arrependo.

- Por que o xingou?

- Achei que ele merecia.

- Por que achou isto?

- Por que não sou ele. Tenho certeza que ele acha que não merece e porque vocês acham também que ele não merece é que estou aqui.

- Não está aqui porque ele não mereça. Está aqui porque há outros modos de resolver conflitos.

- Foi pensando assim que a França e a Inglaterra deixaram Hitler invadir os Sudetos.

Ele me olhou por cima dos óculos.

- Tays, você sempre foi educada, estudiosa, com um histórico ilibado... Eu vou colocar aqui só advertência. Mas que não aconteça de novo, senão serei obrigado tomar medidas mais firmes. Está dispensada.

- Obrigada, diretor.

Ah, professor Alcione... Eu já quis perdoá-lo várias vezes por não dar mais aula de literatura e ainda não consegui. Por outro lado, cutuca-me a compreensão de que todos nós temos nossas próprias motivações. Alcione deve ter encontrado seu caminho e não cabe a mim, justo a mim, coloca-lo na cruz, só porque não se sacrificou em sala de aula para me ajudar a sentir, compreender e amar poesia. Isto ocorreria no tempo certo, anos depois.

Estes professores... Será que sabem que eles tatuam coisas na alma dos seus alunos? Eu sei. Tento cuidar dos meus com zelo. E sou muito falha às vezes, mas não é por querer mal. É porque não sou perfeita.

Talvez os leitores e leitoras queiram entender o porquê de trazer estas memórias justo agora. E já lhe vou esclarecer. É que eu ando errando demais na escrita das palavras. Isto me incomoda. Aprendi a escrever, mas não sei escrever como gostaria, o que naturalmente já me irritava o bastante. Só que agora está pior. Aliás, queiram me perdoar, se ao ler até aqui, perceberam meus equívocos gramaticais. Eu até reviso muito, mas sempre algo passa despercebido. Outro dia troquei TRÁS por TRAZ. E outro dia troquei MACIA por MASSIA. E outro dia troquei TOSSE por TOCE. E outro dia troquei INTUBADO por ENTUBADO. E outro dia troquei ESCLARECER por EXCLARECER. Alguns dias atrás esqueci como se escreve a palavra obcecado e depois como se escreve a palavra vulnerável. Também esqueci como se escreve escassez e outro dia escrevi com S no final a palavra talvez.

Eu ando me espiritando com estas coisas que podem parecer tolas. Eu aprendi com Clístenes que eu posso errar, que não sou infalível, mas ando com pressa demais e minha ansiedade está me desensinado as palavras, fazendo-me tropeçar em erros primários. Incomoda-me e tenho as mesmas sensações de quando errava a palavra exceção dos ditados de Anna Cecília.

As vírgulas arrumadas de Ana Cristina, tão bem postas nas lições, hoje, eu as coloco em lugares que não deveriam estar e as deixo faltar onde são necessárias. Depois, quando vou revisar o texto, sinto uma agonia, uma espécie de toque com aquela desarrumação. Poderia encontrar um culpado e talvez escolhesse Alcione para culpar, pois foi ele quem deixou de me aperfeiçoar ao migrar para diretoria. Mas no fim, eu sei que a culpa é minha. Culpa de minha pressa, de minha ansiedade, de minha tagarelice, de minha falta de atenção. E principalmente, culpa por não praticar continuadamente a primeira lição do professor Clístenes, de que está tudo bem, de vez em quando errar. O problema é que, paranoica que sou, sempre penso que estou abusando desse direito. Mesmo quando, ao enxergar os meus erros, proponha-me a fazer as devidas correções.

  Tays Melo

Lula e o PT: a fênix da esquerda brasileira.

 Sim, o mundo dá muitas voltas. E não gira feito disco, porque ao contrário do que pensam alguns, a Terra não é plana. Mas porque venho aqui escrever isto? As dores sentidas durante injusto processo que levou o Partido dos Trabalhadores a ser visto como partido só de desonestos e o também desarrazoado cárcere de Lula em 2018 nos deixou marcados demais. Sentimos dor, desesperança e pensamos talvez que a injustiça fosse vencer. Mas...

Nós não desistimos. Nossas bandeiras vermelhas permaneceram hasteadas. Sob um assobio agudo e o sopro dos ventos do fascismo, resistiram com os rasgos das batalhas e os buracos do incêndio de mentiras. Nossa estrela, em várias pontas rachadas, manteve a sua luz, mostrando que aguardava o tempo levar a neblina das falácias. Esta é a força do PT. Um partido, em cujas veias corre o sangue da luta dos trabalhadores. E os trabalhadores são fortes.
Lula é o nosso modelo de liderança. Não foge. Responde a quem pergunta e depõe olho no olho com seus algozes. É sempre presente, sempre demonstra gratidão. Porque Lula emergiu do suor das massas e grita com a voz do povo.
Lula nunca esperou as coisas melhorarem e a poeira abaixar para erguer os braços e começar a luta. Ao contrário, ele mesmo levantou a poeira, chamou os companheiros e companheiras e mudou a cara do Brasil.
O povo, nos governos do PT, aprendeu que ele pode participar, que ele pode entender, que ele é livre para ser e dizer. O povo aprendeu nos governos do PT, que ele é importante, porque a democracia não se faz sem o povo. O povo, ainda no seu processo de formação democrática, bombardeado por falsas narrativas e manipulado pelos herdeiros, rejeitou o PT, exigiu mudança e mudou.
Hoje, o povo parece cada vez mais entender esse processo, olhando para o passado com fatos elucidados, o povo costura a bandeira vermelha com cuidado. Não quer estar errado, mas também não deseja magoar as feridas na bandeira que abana suas dores e que serve de curativo para os cortes profundos na democracia. O povo se sente equivocado, enganado, manipulado e, humilde, está voltando atrás. Rememora a liberdade e o respeito que angariou nos anos antes do golpe de 2016 e volta fitando o passado ao abrir os braços para quem já lhe reconheceu a dignidade. Abre os braços para Lula e para o PT.
É emocionante adentrar grupos nas redes e ler vários comentários de pessoas dizendo que vão votar em Lula pela primeira vez ou que se arrependeram de ter acreditado em um juiz parcial. É inacreditável ler como estas pessoas estão tendo a coragem de afirmar que estavam erradas e não terem mais vergonha de dizer: "eu votei mal, eu errei, mas não vou errar outra vez". E aí entra a afirmação inicial sobre as voltas que o mundo dá.
As pessoas sonham com Lula na presidência, mas não é porque Lula é um heroi, e sim, porque a marca de prosperidade através de trabalho concreto que Lula e suas estratégias políticas introduziram no Brasil é real. O povo viveu e o povo sentiu. Não é sonho, não é vislumbre. Lula mostrou que é possível o Brasil ser muito melhor. Todo o processo de desgaste que Lula e PT sofreram teve um reflexo imensamente negativo sobre os avanços conquistados na primeira década de 2000.
Lula não é um salvador. Ele é um humanista. E por ter conhecido a experiência de ser do povo, ele sabia e sentia o que o povo precisava e conduziu brilhantemente ao máximo as potencialidades do país, reconhecendo sua diversidade e colocando-a para governar ao seu lado.
Lula foi presidente de todos, dos homens, das mulheres, dos indígenas, dos negros, dos homossexuais, crentes, ateus, trabalhadores urbanos e rurais. Escolheu para governar ao seu lado pessoas em quem acreditava que poderiam dar seguimento ao seu projeto de transformar o Brasil numa nação justa e feliz. Mas não é fácil e em todo caminho há os percalços. Nada pode ser perfeito. É preciso apenas seguir em frente e continuar lutando com inteligência, a coragem, a dignidade e a força exemplar de Lula, para suportar as investidas de quem quer ver o povo nos grilhões outra vez.
Tays Melo

domingo, 4 de julho de 2021

Ônibus Universitário.

 

Era o ano de 2005. Eu era caloura e já me perguntava quão difícil seria me formar.  Eu já tinha aprendido a me manter discreta no ônibus universitário, que funcionava como uma sociedade areiense em miniatura. Lá havia a direita, a esquerda, os “isentões”, os ateus, os religiosos, os despudorados, os bêbados, as patricinhas, os nerds, os tolos e não necessariamente  quem fosse de um grupo não pertenceria a outro.

O ônibus universitário da prefeitura de Areia, cujo dono honorífico naqueles meandros da década de 2000, era Seu João, o nosso motorista, tinha sido uma conquista da classe estudantil, desejosa de ocupar as vagas ampliadas nas universidades pelo então governo Lula. Mas, para seu João, não interessava se você era estudante de engenharia, medicina, filosofia ou administração. O gosto musical prevalecente era o do motorista. Na Segunda-feira, cinco horas manhã, cinquenta poltronas, cem estudantes e um comando “Fasta pra trás que ainda cabe”, dizia seu João, para não deixar ninguém tampouco perder a hora do ônibus partir.

É sempre instrutivo o gosto popular por canções que falam de amor e traições e no toca fitas do ônibus, o lado A e o lado B da fita da banda Calypso viravam no automático. Não adiantava reclamar ou pedir para não tocar de novo.

Lá íamos nós, universitários de Areia, voltando para casa no pingo do meio dia, com fome, com calor,  com sono e ouvindo que “a lua me traiu”. Aqueles dias me traziam sempre a lembrança de um professor de matemática do ensino médio que, embora quase não aparecesse para dar aulas, quando aparecia nos dava aquele banho de motivação com sua lição favorita: “Difícil não é entrar na Universidade, meus queridos. Difícil é sair”.

Naquele outono de 2005, sentou-se na poltrona do meu lado Gabriela, do curso de letras da UEPB. Talvez não tivesse assentos sobrando naquele dia. Quão significativo foi meu espanto ao perceber que havia sim lugares melhores que a poltrona ao meu lado e mesmo assim, ela se sentou lá. Mas também era estranho sobrar poltrona. Alguém devia estar muito atrasado.  O ônibus era sempre lotado. Entrar no ônibus era se propor a uma aventura e abraçar a filosofia de que “seja lá o que Deus quiser”. Outra filosofia exclusiva de Seu João era “Freio é feito para se usar.” Ele a proferia sempre que alguém sugerisse que ele fosse mais devagar.  Vivíamos um dilema, na verdade. Meio dia e meia na rotatória do Açude Velho, hora do rush, em direção à Areia, pedir para ir devagar era pedir para morrer de fome e calor. Pedir para ir mais rápido era pedir para morrer de acidente ou infarto. Seu João, habilidoso, fazia o meio termo. Acabou que a gente se divertiu muito contando estas histórias nos bares depois que nos formamos.

Mas enfim, Gabriela escolheu a poltrona ao meu lado. Eu, do lado da janela, poltrona do meio à direita do motorista, onde não pegava o sol do meio dia. Havia disputas por estes lugares e chegar cedo para formar fila não nos causava qualquer constrangimento de frente à universidade lotada. Só nós, estudantes areienses, sabíamos o valor do lugar na fila.

Cabelos cacheados, pretos e longos até o quadril, olhos redondos, feições ansiosas, corpo esguio, voz fina e ligeiramente infantil, beirando os 20 anos, Gabriela tinha uma característica própria que eu admirava. Ela não sabia esconder o que pensava a respeito de outro ser humano.  Porém, notei, desde o início, sua falta de tato, discernimento e discrição para lidar com as diferentes histórias e personalidades que se desenvolviam nos corredores do Busão. Mas e daí? Gabriela não ligava mesmo.

Foi-me estranho a princípio, pois sentar-se ao meu lado, naquela época, não era algo que alguém fizesse muita questão.  Eu, a pedante, a ranzinza, intragável... Alguém mais próximo a mim, até chegou a gritar aos quatro cantos do ônibus que era “Por isso, Tays, que ninguém gosta de tu!”. Outro disse, sem meias palavras “Leu uns quatro livrim e acha que sabe alguma coisa”. Não era minha intenção me defender do que diziam a meu respeito. Talvez houvesse uma razão para que todos me julgassem daquela maneira. Podia ser justo. E se não fosse, acreditei que eu ficaria bem mesmo assim.

Acho que Gabriela também não gostava de mim. Só que naquele dia, naquele momento, parecia importante para ela um esforço para me tolerar.

Após sentar-se, disse:

- Oi!

Eu respondi com um semblante interrogativo, sobrancelha arqueada, olhando de banda, bem desconfiada...

- Oi!

Bastou isso e ela desandou a falar. Foi direto ao ponto. Disse que tinha um problema amoroso e que sabia que eu poderia ajudar. Como ela sabia e/ou porque julgava saber, isto eu não sabia. Mas disse que havia conversando com alguém que, segundo ela, tinha recebido sábios conselhos meus sobre problemas familiares e tinha resolvido pelo menos metade deles.

Disse Gabriela:

- Olha, eu soube que você é uma pessoa que gosta ler sobre diversos assuntos. Tem uma visão ampliada e filosófica dessas coisas que o povo acha que é a maior balela. Eu ando meio perdida com uma situação da minha vida. Se você puder me aconselhar...

- Quem te disse que sou a pessoa certa para isso?

- Foi Edna. Ela disse que outro dia conversou com você sobre algo muito importante e te ouvir a fez tomar boas decisões. Por favor, eu sei que a gente não se conhece bem, mas quem sabe você ouvindo minha história...

- Gabriela, eu faço história. Pede isso a alguém que faça psicologia. Vai eu fale algo que lhe desagrade. Além do mais, eu não faço a menor ideia de quem seja essa Edna.

Mas Gabriela não parou. Parecia não ter ouvido uma palavra do que eu lhe dissera. Já foi logo mudando de assunto, com uma pergunta que me encabulou.

- Olha, é verdade que você teve muitos namorados?

- O quê?! Foi Edna quem te disse isso também?

- Ah, não. Isso eu ouvi por aqui mesmo, nos corredores do ônibus. Disse-me, balançado a mão esquerda no meio do corredor como quem espalha migalhas pelo chão.

- Ah, é? E por acaso você sabe quem começou esta história?

- Ah, isto aí eu não sei. Até porque eu não ando colhendo a vida dos outros nem dou atenção a boatos.

- Entendi. Que grande alívio!

- Ah, Tays, por favor, não seja mal humorada como sempre. Ajude-me!

- Gabriela, eu não estou de mal humor. Eu estou com fome. Fome não me deixa ser legal com ninguém.  E tem mais. Eu não tive muitos namorados. Eu só tive bem mais que a maioria das garotas da minha idade. Porque, ao invés de namorar um cretino por anos e anos, achando que amar de verdade é suportar cretinice, eu terminava com os cretinos e tentava conhecer gente menos ordinária. Mas, acredite, não é tarefa fácil. Se quer um conselho, não vale sequer a pena procurar.

- Olha só, menina! É disso que estou falando. Você parece ser uma pessoa que sabe muito da vida. Conta mais.

- Achei que não se interessava pela vida dos outros, Gabriela.

- Gabi, mulher! Pode me chamar de Gabi.

- Tá. Gabi. Logo, a gente vai chegar em Esperança e eu queria tirar um cochilo. Diz logo o que vosmicê deseja de minha pessoa.

- Ah, tá. Desculpe-me. Deixa eu te explicar. Preciso de um conselho, sabe. Como você já foi muito namoradeira...

-Gabi...

- Ah, tá, desculpa. Como você tem uma certa experiência, eu pensei em te pedir ajuda.

- De forma objetiva, qual é o teu problema?

- Eu estou saindo com um rapaz já faz dois anos.

- Só saindo? Há dois anos?

- É, mas é porque tem uma série de coisas envolvida, sabe. Antes, ele tinha namorada e tals...

- Gabi, não me confidencia estas coisas não. Eu não quero ter coisa aleatória para me indignar.

- Ai, mulher, tem paciência. Eu preciso de uma opinião sábia e vivida.

- Vivida? Você tem vinte anos e eu vinte e um.

- Mas você ler mais do que eu e namorou mais.

- Se eu te ouvir, você promete não falar mais comigo sobre esse assunto?

- Prometo até não falar mais com você.

- Ah, mas isso aí você faz o tempo todo. Menos hoje.

Gabriela não se importou com meus julgamentos. Ela contou que o garoto estava só com ela naquele momento. Ele havia lhe prometido várias vezes vir a Areia para vê-la, mas não cumpriu. Ele era de Campina Grande e quando não se viam esporadicamente na universidade, falavam pelo msn e Orkut. Contou-me com olhos lacrimejantes que ele, nas palavras dela, fazendo aquela voz aguda de quem fala com criança, “era super fofo”, “Tão esforçado para ser independente, tadinho”,  mas não tinha trabalho ainda e economizava toda mesada que recebia dos pais para abrir o próprio negócio. Assim, ainda não podia bancar o cinema, o sorvete e os bombons do dia dos namorados.

- Nossa! Que tristeza, Gabi. E que partidão você arranjou!

- Eu sei que dá pena dele. Ou você tá debochando? Não debocha. Eu me sinto culpada de ficar cobrando ele assumir um namoro comigo. O que você acha? Será que essa relação vai prosperar?

- É sobre isto que você tem dúvida? Perguntei olhando a paisagem pela janela do ônibus, com punho fechado segurando o queixo.

- Porque assim... Eu entendo o lado dele, sabe. Mas já faz dois anos e a gente nem sequer pode ficar de mãos dadas. Ele diz que me ama todo dia, que não quer me perder... Não quero ser injusta e perder alguém especial.

- Veja bem, Gabriela.

- Gabi!

 -Veja bem, Gabi. Estar de fato com quem se diz amar só é impossível quando realmente não se ama.  O que impede uma pessoa que te ama tanto, pegar a carteira de estudante dele, tirar quatro reais e oitenta centavos da mesada, pegar o São José e vir em Areia para te ver? A mesada é de cinco reais? A única pessoa especial que está se perdendo nessa história toda é você.

 

Gabriela refletiu sobre minhas palavras por oito segundo. Depois me fitou, esbugalhando os olhos, fechou o semblante ruborizado de raiva e fez sumir aquela voz quase infantil enquanto dizia:

- Que dureza, Tays! Como você é cruel! Bem que Aline me alertou que teu coração é de pedra.

- Aline? E não foi Edna quem me recomendou?

Ela se levantou. Olhou-me com fúria, cerrou os lábios e ao sair ainda falou:

- Deve ser por isso que não se ver ninguém querendo viajar com você.  

 


                   Tays Melo.

 

 

domingo, 27 de junho de 2021

Café

Eu amo café.
Dizem que café em excesso faz mal. Dizem que café com velhice faz mal. Café com o tempo ou com um tempo faz mal. Particularmente, eu só me sinto mal quando não tem café. Mas confesso que me sinto inquieta porque o café que antes só me dava prazer, hoje me gera uma leve tristeza e desconfiança. Desconfio que fico agitada e mal humorada por não poder sair por aí só para tomar um café.
Fico sozinha em casa, tomando café em minha mesa de madeira com quatro cadeiras, na cozinha pequenina, a contemplar o casal de cangaceiros, bordado na camisa do filtro, presente de uma amiga que viajou para as bandas de Alagoas... Ou terá sido Sergipe? Talvez Ceará... Não me recordo bem agora. Que importa? O bordado está lá. É lindo e faz companhia na hora do café. Converso com o casal, perguntando se já planejam um herdeiro. Parecem tão apaixonados. Devo dizer que fico até feliz por eles só continuarem simpaticamente a sorrir e não responderem minha pergunta invasiva. Talvez estejam achando graça na minha xícara de café verde-abacate.
Antes da pandemia, eu prometi um monte de café. Prometi a Anna. Prometi a Cleidi. Prometi a Xavier. Prometi a alguns amigos de Campina Grande e que os levaria para conhecer museus, praças, bares e até a catacumba de Pedro Américo, depois de tomarmos café.
Lá de casa, a gente subiria a ladeira do Parque do Ipê - sem ipês - e curvaria pela Fernando Santos Leal para decidir, quando chegasse no posto de gasolina da Santa... Sim, a santa tem um posto de gasolina em Areia, diz o povo. O povo sabe das coisas e não sou ninguém na fila do pão para desdizer. Mas quando chegasse lá, subiríamos pela Rua do Pirunga ou pista a fora pelos aceiros da passarela, a pé, é claro, pois não se sabe o que é ser de Areia, se não encara suas ladeiras a pé. Mutirão, Rua da Palha, Rua do Bode, Rua do Bonito, Rua da Baixinha, Rua do Pirunga, Parque do Ipê, Rua da Jussara... Pergunta qual não é ladeira.
Eu não criei muitas expectativas sobre nenhum café que planejei, porque a final, era só um café. Um delicioso e prazeroso café como qualquer outro que se pode tomar qualquer dia. Agora me sinto frustrada, porque não importa o quanto eu diga que quero tomar um café com estas pessoas, não sei mais quando será possível. E o tempo não para. Não sabemos quanto dele temos. E é triste, porque tudo que queria com estas pessoas era um simples café, enquanto poderia ouvir suas vozes, estudar seus olhares, suas reações ao público, sua cautela sobre o que me contar e a perda do medo ao sentir, depois de um boa conversa, que poderiam confiar mais em mim. Um trabalho de construção ou restauração de afinidades, parcerias, amizades, simples e duradouros amores. Areia é o lugar de se fazer coisas assim. A gente nem sente e plaft! A gente já tá se envolvendo com as pessoas como se as conhecesse de vidas passadas.
Em Areia tem alguns cafés, não são gourmet e sim lanchonetes onde tomar um cafezinho preto, feito no bule, coado no pano. Mas tem um goumet para o qual eu costumava levar os amigos forasteiros. Café Filosófico, de uma colega professora, localizado bem em frente à escola que trabalho, lá na Rua da Gameleira. Logo que passei a frequentar eu pedia Zygmunt Bauman ou Simone Beauvoir, mas depois conheci Hipátia e a apreciei com pão de queijo. Sempre escolhia uma salinha reservada cuja prateleira de livros aderida à parede me deixava indecisa se eu ia para ler e tomar café ou conversar e tomar café. Um ambiente familiar, agradável, cheio de sofisticação na mornura dos sobrepostos de chantilly e chocolates.
Hoje, se eu pudesse convidar alguém ou se fosse convidada por alguém para um delicioso café, eu ia sugerir um café comum, preto, meio amargo, com pão francês recheado com queijo manteiga. Seria durante um sábado, às oito e trinta ou às nove horas da manhã, no meio da feira, vendo o passar de gente , de carros e a confusão em não saber onde estacionar.
A feira de Areia já foi bem mais empolgante. Quando eu tinha cinco anos, vinha do sítio com Mainha aos sábados para comprar carne, feijão, farinha e condimentos.
Era muito cedo ainda, quando rumo à feira saíamos das brenhas da mata do Pau-Ferro. Eu, puxada pelo braço, para não perder o passo avexado de minha mãe, que temia perder o único carro de frete que o povo do sítio usava para vencer a longa estrada de barro vermelho da barragem até a cidade. Era um opala empoeirado, cujo dono, Seu Antônio Canário, também era o proprietário da única bodega daquelas bandas e fornecedor de leite. Era meio ranzinza e mantinha no terreiro uns gansos bravos que algumas vezes me fizeram voltar para casa com a garrafa de leite vazia. Foi quando minha mãe se aborreceu e solicitou que na hora da entrega do leite, Dona Salete, a esposa do velho Canário, mantivesse os gansos presos. Os gansos de agora não são diferentes dos de 1989. O sítio vizinho aqui da minha casa cria gansos e cachorros, mas advinha quem protege a propriedade? Eu passo de moto, os cachorros só faltam me derrubar no meio da estrada e depois se dispersam como jogadores terminando partida de futebol. Já os gansos me fitam do portão feito guardas, como que me desafiando a invadir a propriedade, se eu tiver coragem.
Voltando ao assunto do café e da feira, quando a gente chegava bem cedinho em Areia, já no calçadão havia uma multidão ao redor de um homem que falava em voz alta sei lá o quê. E exibia uma enorme cobra para os curiosos. Eu, criança, assustada e desconfiada de qualquer um que não fosse Mainha, pensava “Esse homem não podia ser uma pessoa normal, deve ter algum poder. Como segura uma cobra enorme com tanta tranquilidade e ela nem o pica, mas parece descansar envolta ao seu corpo como se fizesse parte dele?”
Todos os sábados, Mainha parava num quiosque ali mesmo, no meio do calçadão. Ele ainda existe lá. Antes, banquinhos de madeira ao redor, assentos redondos, balcão fechado e o cheiro de café e queijo no ar. Era lá que o café, o pão e a fatia de queijo manteiga me fazia sentir a mais feliz das criaturas ao lado de minha mãe, que muitas vezes só podia pagar um café e o pagava para mim. Ah, o café... Ah, a feira... O aroma e os feirantes invadiam as ruas do calçadão. O mercado central era de carnes, frutas, condimentos e verduras. Eu detestava passar por lá, porque sempre sujava meus sapatinhos de salmoura escorrida no chão. Mas não podia largar a barra da saia de Mainha, a única pessoa em quem eu podia confiar nesse mundo, que faz o melhor café que existe no mundo e mesmo que ela não faça o café, se ela o serve, certamente será o melhor do mundo.
Sempre digo que quero fazer várias coisas quando a pandemia acabar... Mas se eu tomar um café aqui em Areia, com cada uma das pessoas que estimo, com algum areiense que também ama café, com um areiense que ama Areia, com uma pessoa que ama conversar, qualquer pessoa, será um encontro sempre ritual, capaz de reverter significativamente as lacunas deixadas pelo confinamento que enfrentamos no agora.

Tays Melo

sábado, 26 de junho de 2021

Cronologia

 

Existe sempre algo grande pelo que agradecer.

Em 2015, agradeci o nascimento de minha filha.

Em 2017 agradeci ao meu ex-marido por me pedir o divórcio.

Em 2018 agradeci por conseguir trabalho.

Em 2019, agradeci por poder levar minha filha ao mar a primeira vez.

Em 2020 agradeci não ter morrido de Covid-19.

Em 2021, agradeço por ter encontrado você.

Porque você me deu a poesia e a poesia me ajuda a suportar

Os dias longe de você.


Tays Melo

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Amor

 

É negócio estranho apertando o lado esquerdo do peito. É como se uma placa lisa, fria, de ferro, comprimida contra o corpo, o empurrasse para trás, o curvando até que não suporte mais e despenque feito árvore centenária de encontro ao chão.

Um buraco foi aberto no estômago não importando se a gente acabou de jantar. E a gente acorda de madrugada como se tivesse acabado de deitar. Com uma sede jamais saciada, não importando quantos copos d' água tomar.

Sede de ver, sede de sentir, sede de conversar, sede de contemplar.

Gestos simples, mexer de lábios ou arquear de sobrancelhas, sorriso curto, olhar por cima dos óculos... Indução a uma necessidade incessante, egoísta, extenuante de querer estar com quem não se pode estar.

Faz parecer humilhante, sem sentido, imaturo, ao mesmo tempo que preenche um mundo que antes era repleto de nadas.

O juízo começa a contestar e chamar à razão. Não se pode pedir o colo de quem não pode ceder o coração. Chora logo tuas dores, te cobre, fecha os olhos e dorme. Encontra caminho novo nos abraços imaginados, jamais dados, nos beijos jamais provados e se fortalece na escassez.

O corpo desfalece, se embriagada, se afoga, se desespera... Ergue a cabeça, engole o choro e adormece.

O tempo não passa nem acaba a agonia. Amor que não se alimenta tampouco se cria. Falece quando dia amanhece e seus restos mortais serão jogados a revelia.

22/06/2021

Tays Melo

Hoje, eu entendi de poesia



Hoje eu acordei ouvindo poesia.

Como fui, um dia, tão injusta com Clarice?

Pensei.

E quase não me perdoei.

Então parei de pensar

E apenas senti.

Como antes não senti?

Como antes não a encontrei?

Quando veio ela de encontro a mim?

 

Hoje, eu acordei sentindo poesia.

Sentindo que talvez nem a merecia.

Sentindo remorso dos anos desvividos

Pela alma remendada a baixos gemidos

E Clarice lá, estendia-me a mão.

 

Hoje, entendi essa poesia

E o mundo se transformou

Meu coração transbordou

Como apenas eu não a via!?

 

Hoje, eu acordei poesia

De arremate uma metamorfose

Uma perfeita simbiose

E fui salva já no começo do dia

 

Por Clarice

Que me invadiu

Que me inundou

E até acalentou

A mais severa agonia.


Tays Melo