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domingo, 27 de junho de 2021

Café

Eu amo café.
Dizem que café em excesso faz mal. Dizem que café com velhice faz mal. Café com o tempo ou com um tempo faz mal. Particularmente, eu só me sinto mal quando não tem café. Mas confesso que me sinto inquieta porque o café que antes só me dava prazer, hoje me gera uma leve tristeza e desconfiança. Desconfio que fico agitada e mal humorada por não poder sair por aí só para tomar um café.
Fico sozinha em casa, tomando café em minha mesa de madeira com quatro cadeiras, na cozinha pequenina, a contemplar o casal de cangaceiros, bordado na camisa do filtro, presente de uma amiga que viajou para as bandas de Alagoas... Ou terá sido Sergipe? Talvez Ceará... Não me recordo bem agora. Que importa? O bordado está lá. É lindo e faz companhia na hora do café. Converso com o casal, perguntando se já planejam um herdeiro. Parecem tão apaixonados. Devo dizer que fico até feliz por eles só continuarem simpaticamente a sorrir e não responderem minha pergunta invasiva. Talvez estejam achando graça na minha xícara de café verde-abacate.
Antes da pandemia, eu prometi um monte de café. Prometi a Anna. Prometi a Cleidi. Prometi a Xavier. Prometi a alguns amigos de Campina Grande e que os levaria para conhecer museus, praças, bares e até a catacumba de Pedro Américo, depois de tomarmos café.
Lá de casa, a gente subiria a ladeira do Parque do Ipê - sem ipês - e curvaria pela Fernando Santos Leal para decidir, quando chegasse no posto de gasolina da Santa... Sim, a santa tem um posto de gasolina em Areia, diz o povo. O povo sabe das coisas e não sou ninguém na fila do pão para desdizer. Mas quando chegasse lá, subiríamos pela Rua do Pirunga ou pista a fora pelos aceiros da passarela, a pé, é claro, pois não se sabe o que é ser de Areia, se não encara suas ladeiras a pé. Mutirão, Rua da Palha, Rua do Bode, Rua do Bonito, Rua da Baixinha, Rua do Pirunga, Parque do Ipê, Rua da Jussara... Pergunta qual não é ladeira.
Eu não criei muitas expectativas sobre nenhum café que planejei, porque a final, era só um café. Um delicioso e prazeroso café como qualquer outro que se pode tomar qualquer dia. Agora me sinto frustrada, porque não importa o quanto eu diga que quero tomar um café com estas pessoas, não sei mais quando será possível. E o tempo não para. Não sabemos quanto dele temos. E é triste, porque tudo que queria com estas pessoas era um simples café, enquanto poderia ouvir suas vozes, estudar seus olhares, suas reações ao público, sua cautela sobre o que me contar e a perda do medo ao sentir, depois de um boa conversa, que poderiam confiar mais em mim. Um trabalho de construção ou restauração de afinidades, parcerias, amizades, simples e duradouros amores. Areia é o lugar de se fazer coisas assim. A gente nem sente e plaft! A gente já tá se envolvendo com as pessoas como se as conhecesse de vidas passadas.
Em Areia tem alguns cafés, não são gourmet e sim lanchonetes onde tomar um cafezinho preto, feito no bule, coado no pano. Mas tem um goumet para o qual eu costumava levar os amigos forasteiros. Café Filosófico, de uma colega professora, localizado bem em frente à escola que trabalho, lá na Rua da Gameleira. Logo que passei a frequentar eu pedia Zygmunt Bauman ou Simone Beauvoir, mas depois conheci Hipátia e a apreciei com pão de queijo. Sempre escolhia uma salinha reservada cuja prateleira de livros aderida à parede me deixava indecisa se eu ia para ler e tomar café ou conversar e tomar café. Um ambiente familiar, agradável, cheio de sofisticação na mornura dos sobrepostos de chantilly e chocolates.
Hoje, se eu pudesse convidar alguém ou se fosse convidada por alguém para um delicioso café, eu ia sugerir um café comum, preto, meio amargo, com pão francês recheado com queijo manteiga. Seria durante um sábado, às oito e trinta ou às nove horas da manhã, no meio da feira, vendo o passar de gente , de carros e a confusão em não saber onde estacionar.
A feira de Areia já foi bem mais empolgante. Quando eu tinha cinco anos, vinha do sítio com Mainha aos sábados para comprar carne, feijão, farinha e condimentos.
Era muito cedo ainda, quando rumo à feira saíamos das brenhas da mata do Pau-Ferro. Eu, puxada pelo braço, para não perder o passo avexado de minha mãe, que temia perder o único carro de frete que o povo do sítio usava para vencer a longa estrada de barro vermelho da barragem até a cidade. Era um opala empoeirado, cujo dono, Seu Antônio Canário, também era o proprietário da única bodega daquelas bandas e fornecedor de leite. Era meio ranzinza e mantinha no terreiro uns gansos bravos que algumas vezes me fizeram voltar para casa com a garrafa de leite vazia. Foi quando minha mãe se aborreceu e solicitou que na hora da entrega do leite, Dona Salete, a esposa do velho Canário, mantivesse os gansos presos. Os gansos de agora não são diferentes dos de 1989. O sítio vizinho aqui da minha casa cria gansos e cachorros, mas advinha quem protege a propriedade? Eu passo de moto, os cachorros só faltam me derrubar no meio da estrada e depois se dispersam como jogadores terminando partida de futebol. Já os gansos me fitam do portão feito guardas, como que me desafiando a invadir a propriedade, se eu tiver coragem.
Voltando ao assunto do café e da feira, quando a gente chegava bem cedinho em Areia, já no calçadão havia uma multidão ao redor de um homem que falava em voz alta sei lá o quê. E exibia uma enorme cobra para os curiosos. Eu, criança, assustada e desconfiada de qualquer um que não fosse Mainha, pensava “Esse homem não podia ser uma pessoa normal, deve ter algum poder. Como segura uma cobra enorme com tanta tranquilidade e ela nem o pica, mas parece descansar envolta ao seu corpo como se fizesse parte dele?”
Todos os sábados, Mainha parava num quiosque ali mesmo, no meio do calçadão. Ele ainda existe lá. Antes, banquinhos de madeira ao redor, assentos redondos, balcão fechado e o cheiro de café e queijo no ar. Era lá que o café, o pão e a fatia de queijo manteiga me fazia sentir a mais feliz das criaturas ao lado de minha mãe, que muitas vezes só podia pagar um café e o pagava para mim. Ah, o café... Ah, a feira... O aroma e os feirantes invadiam as ruas do calçadão. O mercado central era de carnes, frutas, condimentos e verduras. Eu detestava passar por lá, porque sempre sujava meus sapatinhos de salmoura escorrida no chão. Mas não podia largar a barra da saia de Mainha, a única pessoa em quem eu podia confiar nesse mundo, que faz o melhor café que existe no mundo e mesmo que ela não faça o café, se ela o serve, certamente será o melhor do mundo.
Sempre digo que quero fazer várias coisas quando a pandemia acabar... Mas se eu tomar um café aqui em Areia, com cada uma das pessoas que estimo, com algum areiense que também ama café, com um areiense que ama Areia, com uma pessoa que ama conversar, qualquer pessoa, será um encontro sempre ritual, capaz de reverter significativamente as lacunas deixadas pelo confinamento que enfrentamos no agora.

Tays Melo

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