Era
o ano de 2005. Eu era caloura e já me perguntava quão difícil seria me formar. Eu já tinha aprendido a me manter discreta no
ônibus universitário, que funcionava como uma sociedade areiense em miniatura. Lá
havia a direita, a esquerda, os “isentões”, os ateus, os religiosos, os
despudorados, os bêbados, as patricinhas, os nerds, os tolos e não
necessariamente quem fosse de um grupo
não pertenceria a outro.
O
ônibus universitário da prefeitura de Areia, cujo dono honorífico naqueles
meandros da década de 2000, era Seu João, o nosso motorista, tinha sido uma
conquista da classe estudantil, desejosa de ocupar as vagas ampliadas nas
universidades pelo então governo Lula. Mas,
para seu João, não interessava se você era estudante de engenharia, medicina,
filosofia ou administração. O gosto musical prevalecente era o do motorista.
Na Segunda-feira,
cinco horas manhã, cinquenta poltronas, cem estudantes e um comando “Fasta pra
trás que ainda cabe”, dizia seu João, para não deixar ninguém tampouco perder a
hora do ônibus partir.
É
sempre instrutivo o gosto popular por canções que falam de amor e traições e no
toca fitas do ônibus, o lado A e o lado B da fita da banda Calypso viravam no
automático. Não adiantava reclamar ou pedir para não tocar de novo.
Lá
íamos nós, universitários de Areia, voltando para casa no pingo do meio dia, com
fome, com calor, com sono e ouvindo que “a
lua me traiu”. Aqueles dias me traziam sempre a lembrança de um professor de
matemática do ensino médio que, embora quase não aparecesse para dar aulas, quando
aparecia nos dava aquele banho de motivação com sua lição favorita: “Difícil
não é entrar na Universidade, meus queridos. Difícil é sair”.
Naquele
outono de 2005, sentou-se na poltrona do meu lado Gabriela, do curso de letras
da UEPB. Talvez não tivesse assentos sobrando naquele dia. Quão significativo
foi meu espanto ao perceber que havia sim lugares melhores que a poltrona ao
meu lado e mesmo assim, ela se sentou lá. Mas também era estranho sobrar poltrona.
Alguém devia estar muito atrasado. O
ônibus era sempre lotado. Entrar no ônibus era se propor a uma aventura e
abraçar a filosofia de que “seja lá o que Deus quiser”. Outra filosofia exclusiva
de Seu João era “Freio é feito para se usar.” Ele a proferia sempre que alguém
sugerisse que ele fosse mais devagar. Vivíamos
um dilema, na verdade. Meio dia e meia na rotatória do Açude Velho, hora do
rush, em direção à Areia, pedir para ir devagar era pedir para morrer de fome e
calor. Pedir para ir mais rápido era pedir para morrer de acidente ou infarto. Seu
João, habilidoso, fazia o meio termo. Acabou que a gente se divertiu muito
contando estas histórias nos bares depois que nos formamos.
Mas
enfim, Gabriela escolheu a poltrona ao meu lado. Eu, do lado da janela, poltrona
do meio à direita do motorista, onde não pegava o sol do meio dia. Havia
disputas por estes lugares e chegar cedo para formar fila não nos causava
qualquer constrangimento de frente à universidade lotada. Só nós, estudantes
areienses, sabíamos o valor do lugar na fila.
Cabelos
cacheados, pretos e longos até o quadril, olhos redondos, feições ansiosas, corpo
esguio, voz fina e ligeiramente infantil, beirando os 20 anos, Gabriela tinha
uma característica própria que eu admirava. Ela não sabia esconder o que
pensava a respeito de outro ser humano. Porém,
notei, desde o início, sua falta de tato, discernimento e discrição para lidar
com as diferentes histórias e personalidades que se desenvolviam nos corredores
do Busão. Mas e daí? Gabriela não ligava mesmo.
Foi-me
estranho a princípio, pois sentar-se ao meu lado, naquela época, não era algo
que alguém fizesse muita questão. Eu, a
pedante, a ranzinza, intragável... Alguém mais próximo a mim, até chegou a
gritar aos quatro cantos do ônibus que era “Por isso, Tays, que ninguém gosta
de tu!”. Outro disse, sem meias palavras “Leu uns quatro livrim e acha que sabe
alguma coisa”. Não era minha intenção me defender do que diziam a meu respeito.
Talvez houvesse uma razão para que todos me julgassem daquela maneira. Podia
ser justo. E se não fosse, acreditei que eu ficaria bem mesmo assim.
Acho
que Gabriela também não gostava de mim. Só que naquele dia, naquele momento,
parecia importante para ela um esforço para me tolerar.
Após
sentar-se, disse:
-
Oi!
Eu
respondi com um semblante interrogativo, sobrancelha arqueada, olhando de
banda, bem desconfiada...
-
Oi!
Bastou
isso e ela desandou a falar. Foi direto ao ponto. Disse que tinha um problema
amoroso e que sabia que eu poderia ajudar. Como ela sabia e/ou porque julgava
saber, isto eu não sabia. Mas disse que havia conversando com alguém que, segundo
ela, tinha recebido sábios conselhos meus sobre problemas familiares e tinha
resolvido pelo menos metade deles.
Disse Gabriela:
-
Olha, eu soube que você é uma pessoa que gosta ler sobre diversos assuntos. Tem
uma visão ampliada e filosófica dessas coisas que o povo acha que é a maior
balela. Eu ando meio perdida com uma situação da minha vida. Se você puder me
aconselhar...
-
Quem te disse que sou a pessoa certa para isso?
-
Foi Edna. Ela disse que outro dia conversou com você sobre algo muito
importante e te ouvir a fez tomar boas decisões. Por favor, eu sei que a gente
não se conhece bem, mas quem sabe você ouvindo minha história...
-
Gabriela, eu faço história. Pede isso a alguém que faça psicologia. Vai eu fale
algo que lhe desagrade. Além do mais, eu não faço a menor ideia de quem seja
essa Edna.
Mas
Gabriela não parou. Parecia não ter ouvido uma palavra do que eu lhe dissera. Já
foi logo mudando de assunto, com uma pergunta que me encabulou.
-
Olha, é verdade que você teve muitos namorados?
-
O quê?! Foi Edna quem te disse isso também?
-
Ah, não. Isso eu ouvi por aqui mesmo, nos corredores do ônibus. Disse-me,
balançado a mão esquerda no meio do corredor como quem espalha migalhas pelo
chão.
-
Ah, é? E por acaso você sabe quem começou esta história?
-
Ah, isto aí eu não sei. Até porque eu não ando colhendo a vida dos outros nem
dou atenção a boatos.
-
Entendi. Que grande alívio!
-
Ah, Tays, por favor, não seja mal humorada como sempre. Ajude-me!
-
Gabriela, eu não estou de mal humor. Eu estou com fome. Fome não me deixa ser
legal com ninguém. E tem mais. Eu não
tive muitos namorados. Eu só tive bem mais que a maioria das garotas da minha
idade. Porque, ao invés de namorar um cretino por anos e anos, achando que amar
de verdade é suportar cretinice, eu terminava com os cretinos e tentava
conhecer gente menos ordinária. Mas, acredite, não é tarefa fácil. Se quer um
conselho, não vale sequer a pena procurar.
-
Olha só, menina! É disso que estou falando. Você parece ser uma pessoa que sabe
muito da vida. Conta mais.
-
Achei que não se interessava pela vida dos outros, Gabriela.
-
Gabi, mulher! Pode me chamar de Gabi.
-
Tá. Gabi. Logo, a gente vai chegar em Esperança e eu queria tirar um cochilo. Diz
logo o que vosmicê deseja de minha pessoa.
-
Ah, tá. Desculpe-me. Deixa eu te explicar. Preciso de um conselho, sabe. Como
você já foi muito namoradeira...
-Gabi...
-
Ah, tá, desculpa. Como você tem uma certa experiência, eu pensei em te pedir
ajuda.
-
De forma objetiva, qual é o teu problema?
-
Eu estou saindo com um rapaz já faz dois anos.
-
Só saindo? Há dois anos?
-
É, mas é porque tem uma série de coisas envolvida, sabe. Antes, ele tinha
namorada e tals...
-
Gabi, não me confidencia estas coisas não. Eu não quero ter coisa aleatória
para me indignar.
-
Ai, mulher, tem paciência. Eu preciso de uma opinião sábia e vivida.
-
Vivida? Você tem vinte anos e eu vinte e um.
-
Mas você ler mais do que eu e namorou mais.
-
Se eu te ouvir, você promete não falar mais comigo sobre esse assunto?
-
Prometo até não falar mais com você.
-
Ah, mas isso aí você faz o tempo todo. Menos hoje.
Gabriela
não se importou com meus julgamentos. Ela contou que o garoto estava só com ela
naquele momento. Ele havia lhe prometido várias vezes vir a Areia para vê-la, mas
não cumpriu. Ele era de Campina Grande e quando não se viam esporadicamente na
universidade, falavam pelo msn e Orkut. Contou-me com olhos lacrimejantes que
ele, nas palavras dela, fazendo aquela voz aguda de quem fala com criança, “era
super fofo”, “Tão esforçado para ser independente, tadinho”, mas não tinha trabalho ainda e economizava toda
mesada que recebia dos pais para abrir o próprio negócio. Assim, ainda não
podia bancar o cinema, o sorvete e os bombons do dia dos namorados.
-
Nossa! Que tristeza, Gabi. E que partidão você arranjou!
-
Eu sei que dá pena dele. Ou você tá debochando? Não debocha. Eu me sinto
culpada de ficar cobrando ele assumir um namoro comigo. O que você acha? Será
que essa relação vai prosperar?
-
É sobre isto que você tem dúvida? Perguntei olhando a paisagem pela janela do
ônibus, com punho fechado segurando o queixo.
-
Porque assim... Eu entendo o lado dele, sabe. Mas já faz dois anos e a gente nem
sequer pode ficar de mãos dadas. Ele diz que me ama todo dia, que não quer me
perder... Não quero ser injusta e perder alguém especial.
-
Veja bem, Gabriela.
-
Gabi!
-Veja bem, Gabi. Estar de fato com quem se diz
amar só é impossível quando realmente não se ama. O que impede uma pessoa que te ama tanto,
pegar a carteira de estudante dele, tirar quatro reais e oitenta centavos da
mesada, pegar o São José e vir em Areia para te ver? A mesada é de cinco reais?
A única pessoa especial que está se perdendo nessa história toda é você.
Gabriela
refletiu sobre minhas palavras por oito segundo. Depois me fitou, esbugalhando
os olhos, fechou o semblante ruborizado de raiva e fez sumir aquela voz quase
infantil enquanto dizia:
-
Que dureza, Tays! Como você é cruel! Bem que Aline me alertou que teu coração é
de pedra.
-
Aline? E não foi Edna quem me recomendou?
Ela
se levantou. Olhou-me com fúria, cerrou os lábios e ao sair ainda falou:
-
Deve ser por isso que não se ver ninguém querendo viajar com você.
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